Opinião: Elena Ferrante e (a) “Educação”

Imagem: Reprodução | O Globo
Por Sergio Marcone Santos
Dos quatro livros da chamada série napolitana da escritora italiana Elena Ferrante, dois já saíram no Brasil: “A amiga genial” (2015) e “A história do novo sobrenome” (2016, ambos pela Biblioteca Azul. O terceiro sai em novembro). É a história de duas mulheres, Lila e Lenu, desde sua infância. Uma coisa chamou-me a atenção nesses romances de formação: a ênfase na educação escolar. Tudo se passa numa Nápoles na década de 60 do século passado. Elas não nasceram em berço de ouro, tinham a pouca chance de continuar seus estudos após as primeiras letras. Casavam-se cedo, pariam, apanhavam de seus maridos e trabalhavam.

Na sua escrita em que cada personagem é quase que desprovida de maniqueísmo, há para nós leitores certa dificuldade de julgar comportamentos a partir de nosso senso comum. Aquelas pessoas daquela Nápoles possuem uma suspensão de bem e mal, pois cada atitude, cada gesto ali depende única e exclusivamente do momento por que passam. Lila e Lenu estudam juntas, mas num certo momento, a primeira opta por deixar os estudos e seguir o ethos: casar-se-á com um ricaço, pois além de ser bela não possui condições de bancar seus estudos. Lenu, por sua vez, ganha livros e incentivo de uma professora, é brilhante aluna, estuda muito e decide tornar-se uma scholar.

Nos romances há sempre uma tensão entre a importância de se estudar ou não. Lenu é muito inteligente, mas Lila é quem perde primeiro a virgindade, é quem sabe os jogos das palavras e seus signos, é quem se casa primeiro, é quem fica rica. Embora não seja dada ao estudo, digamos, formal, ela tem uma sensibilidade maior para ver o mundo a partir de uma certa ótica – a da Vida -, mas que não anula, pelo contrário, sustenta, suporta aquela amiga decidida a tornar-se doutora. Numa palavra: simbiose.

Corta.

O filme de Loni Scherfig, “Educação” (“An Education”, Inglaterra, 2009), com roteiro de Nick Hornby (atire o primeiro vinil quem não assistiu ou leu “Alta Fidelidade”), traz a atriz Carey Mulligan fazendo a adolescente Jenny Carey, de 16 anos, moradora de um subúrbio londrino. Também é brilhante, estudiosa e sonha com entrar em Oxford, sob forte pressão do pai (o ótimo Alfred Molina). Mata-se de estudar latim. No dia de seu aniversário ganha um dicionário de... latim!!!  Entediada, pois. Eis que aparece em sua vida David (Peter Sasgaard) e dá-se uma reviravolta. Bares de jazz, restaurantes, óperas, aventuras um tanto escusas, amor. Diante deste banquete, Jenny começa a questionar se aquela não seria uma vida bem melhor do que a que estaria sujeita em Oxford. Ela, definitivamente, queria menos “eureka!”e mais “cheers!”.

Tanto nos livros de Ferrante quanto no filme de Scherfig, a educação é posta em xeque perante a riqueza da vida. Ou seja, todo o seu Deleuze esvai-se ante uma dor de dente. Em “Educação”, a vida entediada da personagem mostra-lhe algo que não subjazia aos livros de que precisava para a sua aprovação em Oxford. Faltavam aos livros, à vida suburbana, à esperança de uma vida melhor depois de diplomada etc. um brilho, élan enfim. Ambas as obras nos convidam a perdermos a inocência tanto de uma coisa quanto da outra. A torre de marfim do saber vira uma torre de babel. O conhecimento é um meio, não um fim. Já a vida é início, meio e fim, mas tente misturar essa sequência que você entenderá melhor seu sentido.

Em “A amiga genial” tendemos a tomar partido quanto a qual das duas - se Lenu ou Lila - seria a “genial” do título. Num determinado momento, fiquei surpreso ao vir a minha escolhida como genial dizer “você é minha amiga genial” à outra!!. Elena Ferrante nos apresenta com essa simples escolha – de qual seria a “genial” – o quão dicotomizada e imbecilizada é nossa visão sobre educação. Se você não precisa da escola para aprender um ofício, não significa que deva ignorar regras que antecedem o seu “notório saber”. O mundo não foi fundado a partir de ti. O que se aprende “nas escolas da vida” é suficiente para determinados campos, mas, como no caso de Lenu e Lila, há uma tensão sobre pender para a educação formal ou a da vida. Nós não somos um poço de educação, nos moldes de “basta eu existir para que a educação exista”, nem somos também aquilo que as academias de ciências adoram: o regurgitar de pensamentos “op. cit.”, “ibidem” dentre outros “abeeneteísmos”.

Essa parca visão não teve o grupo de boêmios em “Educação”.  Jenny era respeitada pelo grupo justamente por sua inteligência, sua intelectualidade. Era preciso tê-la por perto para dar uma certa legitimação-bibelô às suas muitas aventuras. No filme e nos romances, a educação é posta a serviço ao que ela se propõe: à vida. Mas uma vida em que ela, a educação, deixa de ser o centro, o motor de desenvolvimento de um ser (de um povo?).

Saímos das crises pseudo existenciais de jovens estudantes em filmes como “A garota do rosa schocking” (“Preety in pink”, dir. John Hughes, 1986) e “Clube dos cinco”(“Breakfest Club”, idem, 1985)  para crises de afirmação da própria vida, na qual o saber é questionado menos por necessidade mas por novas demandas de deficiência ou abundância do próprio saber, e ambas – a deficiência e a abundância - são escoadas na própria vida. Exemplo de deficiência: nossa indigência cultural. Um exemplo de abundância: nossos bandidos engravatados com diplomas de universidades de ponta.

Façamos pois do limão uma laranjada. Apele para a alquimia que mistura elementos da escola, do seu caráter e de sua força vital em medidas exatas, e não necessariamente nesta ordem. É o que nos apregoam Jenny, Lila e Lenu.

Em tempo: semana passada foi desvendada quem é Elena Ferrante. Ela nunca aparecera e só falava ao público através de sua agente. Descobrir quem se escondia (?) por trás daquela narrativa pulsante era o desejo de várias pessoas no mundo. Pois bem: ela é Anita Raja, uma tradutora da própria editora que edita os livros de Ferrante na Itália. Foi descoberta a partir de uma investigação feita por Claudio Gatti sobre seu enriquecimento (“siga o dinheiro”, lembram?), com direito a compras de imóveis caríssimos. O jornalista italiano está sendo espinafrado por ter desfeito o mistério e por ter violado a privacidade da escritora. Se isso tudo for puro marketing, acertaram em cheio: após a divulgação de quem é Ferrante, suas vendas continuam disparadas.

Sergio Marcone Santos é formado em Letras Vernáculas pela UEFS e pós graduando em Comunicação em Mídias Digitais pela Unifacs

*As opiniões emitidas em artigos assinados no site Diário da Notícia são de inteira e única responsabilidade dos seus autores.
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