'Vivia sob ameaça, com armas na cabeça', diz vítima de violência doméstica resgatada por ronda especializada na BA

Foto: Danutta Rodrigues
Mais de 3 mil feminicídios a menos na Bahia. Com quase quatro anos de atuação, a Ronda Maria da Penha atende mulheres vítimas de violência doméstica em Salvador e outras 13 cidades do estado, sob o comando da Major Denice Santiago. A corporação especializada da Polícia Militar, formada por homens e mulheres, tem garantido a vida e a dignidade de muitas "Marias", "Alices", "Joanas" e "Lívias". Chamados de "Salvadores de Marias" por uma das vítimas assistidas pela Ronda, a tropa "Maria da Penha" da Bahia tem inspirado iniciativas semelhantes em outros estados, mas, principalmente, tem conquistado a confiança das vítimas.

Com dificuldade em contar a própria história, fruto da violência sofrida em 20 anos de relacionamento, Lívia Aragão foi uma das primeiras mulheres a serem atendidas pela Ronda Maria da Penha, em 2015, ano em que a corporação foi criada. Os lapsos de memória e o riso sem graça e um pouco tremido evidenciam a submissão e a falta de apoio com que a comerciante de 42 anos teve de conviver no período com o agressor antes de ser resgatada pela Ronda. O agradecimento emocionado de Lívia revela a dor de uma mulher que foi silenciada e desacreditada até conhecer a corporação da Major Denice. Foi ela quem "batizou" os policiais da tropa especializada de "Salvadores de Marias".

Os diversos tipos de violência sofridos pela vítima deixaram sequelas físicas, emocionais e financeiras. Lívia conta que as agressões começaram a partir do ciúme que o ex-marido dela tinha com qualquer pessoa. O poder de persuasão do agressor conseguia com que a vítima sempre retomasse a relação. As violências psicológicas deram lugar às agressões físicas, que ela conta com dificuldade temporal. Lívia tem dois filhos com o ex-marido, um menino de 11 anos e uma menina de 12. Sempre ao lado da mãe, as crianças também sofreram as ameaças do pai. E foi justamente para proteger os filhos que a comerciante teve coragem para reagir. A primeira ajuda partiu de vizinhos, que ligaram para o 190 e acionaram a polícia.

Com o atendimento da Ronda Maria da Penha, que prestou todo o acolhimento e todas as assistências, desde a esfera emocional à esfera jurídica, o sofrimento de Lívia ainda estava longe de ter um fim. A comerciante descobriu que perdeu todos os imóveis e negócios que tinha em sociedade com o ex-marido após ter dado uma procuração a ele de plenos poderes. O único imóvel que restou foi a casa onde ela mora atualmente, na Cidade Baixa, em Salvador. Segundo ela, os reparos de cimento nas paredes da residência foram causados por frequentes arrombamentos que o ex-marido provocava para pegar documentos. Hoje, ela tem conseguido provar na Justiça o patrimônio adquirido durante o casamento, mas a batalha judicial ainda está em curso.

Em quase quatro anos de atuação, a Ronda Maria da Penha já prendeu 137 agressores, fez 141 encaminhamentos às delegacias, realizou 1.023 palestras e eventos, fez 10.797 fiscalizações de medidas protetivas e atendeu 3.331 mulheres. Também recebeu 478 chamadas de urgência e efetuou 49.666 abordagens. Atualmente, a Ronda conta com 108 policiais militares em todo o estado. Sob o comando da Major Denice Santiago, que também é idealizadora da Ronda, os policiais atendem vítimas de violência doméstica em 13 cidades, além de Salvador. São elas: Paulo Afonso, Juazeiro, Vitória da Conquista, Feira de Santana, Itabuna, Senhor do Bonfim, Lauro de Freitas, Campo Formoso, Sobradinho, Jacobina, Ilha de Itaparica, Guanambi e Barreiras.

A declaração reforça o poder da denúncia, pois, segundo ela, o aumento no número de denúnciar reflete a credibilidade nos poderes Executivo e Judiciário. Para a major, anteriormente, uma medida protetiva era só um pedaço de papel. Hoje, o agressor sabe que tem a Ronda. Para Denice, a sociedade já consegue olhar para uma mulher que sofreu uma violência doméstica como vítima. Antes, diz, a mulher era responsabilizada pela própria violência sofrida.

Essa mudança de comportamento a partir da compreensão desses indicadores da sociedade baseada em um pensamento machista, segundo a Major, faz com que seja repensado o modo de estruturar a Ronda. Segundo Denice, a cada 10 ligações para o 190 da Polícia Militar, 7 são de mulheres pedindo socorro. Por esse motivo, e devido a limitações de efetivo, apenas as mulheres com medidas protetivas são atendidas pela Ronda Maria da Penha. A major defende que a polícia não pode ser meramente combativa porque, se for, sempre será trabalhada a consequência.

E, para ela, trabalhar na consequência significa dizer que a batalha nunca será vencida. A major se orgulha de nenhuma vítima atendida pela corporação ter sido morta. São, atualmente, 3.331 feminicídios a menos, como ela define. Denice destaca também a importância da interseccionalidade ser entendida.

"A mulher preta, pobre, periférica, ela não tem acesso a saúde, defesa de advogado pago, ela está ali fazendo seus acordos, seus ajustes. E a gente precisa entender que a violência nela chega de uma forma mais cruel." "É uma violência democrática tão difícil porque ela está em todas as classes sociais, etnias, religiões, faixa etária", conclui.

Fonte: G1
Postagem Anterior Próxima Postagem

نموذج الاتصال