Capital do licor, Cachoeira preserva tradição centenária que revolucionou estruturas sociais e vive processo de modernização

Foto: Eric Luis Carvalho/g1
Entre as ruas da histórica cidade de Cachoeira um cheiro típico denuncia a época do ano: é tempo de festejos juninos, é tempo de licor. No sobe e desce das ruas de paralelepípedos tomadas de visitantes durantes os dias dedicados a festas do mês de junho, o aroma adocicado de frutas tropicais misturado com álcool dita os rumos da cidade

Nesse período, Cachoeira é uma espécie de capital baiana do licor. O título informal ainda se torna coisa séria no dia 25 de junho, quando a capital do estado é transferida oficialmente para a cidade por conta dos festejos da Independência do Brasil na Bahia.

Não há informações sobre a presença do licor de Cachoeira nas lutas históricas por independência, mas é possível que ele já estivesse pela cidade. E o fato é que a bebida, hoje tombada como patrimônio histórico municipal, foi determinante em uma revolução social na cidade que tem apenas o 111º Produto Interno Bruto (PIB) do estado.

“Os donos dos grandes fabricos de licor de Cachoeira não são filhos dos donos dos antigos engenhos, nem das canas de açúcar do recôncavo. São pessoas humildes que não tinham dinheiro, são pessoas trabalhadoras, que acordam cinco horas da manhã e vão dormir duas horas da madrugada num período desse”, disse ao g1, José Luiz Bernardo, presidente da Associação dos Produtores de Licor de Cachoeira

“Se você olha quem são as principais pessoas da produção hoje você pode se perguntar se houve uma revolução socialista em Cachoeira. A resposta é não. O que houve foi o licor, a partir dos erros e os acertos dessas pessoas, pequeno produtores que nunca foram apoiados por entes públicos ou privados e que construíram tudo isso graças ao licor”, reforça, enquanto defende que medidas como linhas de créditos para investimentos poderiam ajudar a categoria.

A tradição centenária vive ainda um momento de modernização. No ano passado, uma fiscalização do Ministério da Agricultura e Pecuária com a Polícia Federal interditou duas das maiores produções, a de Roque Pinto e a do Arraial do Quiabo

Na ocasião, a ação recebeu críticas de produtores de licor, que alegaram que o MAPA descumpria prazos dados para adequações. O MAPA afirmou que a ação teve o objetivo de evitar o risco à saúde do consumidor e que processo aconteceu após denúncias de irregularidades na produção e comércio da bebida.

Um ano depois, a situação está pacificada e os principais produtores enquadrados nas recomendações da coordenação de Vinhos e Bebidas do Ministério da Agricultura e Pecuária, responsável por fiscalizar a produção.

“Eu acredito que hoje a indústria de Cachoeira ainda está num processo de pavimentação, de arrumação. Os produtores hoje já contam com a fiscalização ostensiva do MAPA. E hoje o licor de Cachoeira não mais um licor artesanal. Ele passa por um processo gigantesco de de adaptação e já não é o de vinte, trinta anos atrás”, detalha José Luis

A situação da bebida chegou a ser debatida no Congresso Nacional em dezembro de 2022, em uma audiência pública, realizada na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços.

“O processo de fiscalização é muito importante. Nenhum produtor se insurgiu contra o MAPA, muito pelo contrário, mas foi um momento muito triste”, diz José Luis.

“Entendemos que é importante termos as licenças e autenticações sobre o produto que é ofertado e consumido, mas o que esperamos é que tenhamos atenção. Nenhum banco ou programa oficial ou internacional proporcionou o mínimo de investimento. É preciso observar que todo investimento feito nunca teve apoio”, critica o presidente da associação dos produtores da bebida

De acordo com a associação de produtores do licor, anualmente a bebida movimenta trinta milhões de reais na cidade. Além da geração de empregos, que teve significativa redução com os processos de modernização. Uma grande produção que já chegou a empregar 120 trabalhadores, hoje precisa de cerca de 60 funcionários. A cidade conta com 15 fábricas da bebida.

Os produtores destacam que nos períodos dos meses que antecedem o São João a economia da cidade tem um crescimento muito grande, e que impacta em toda cadeia produtiva, desde a venda do licor na ponta ao cliente até a agricultura familiar, na produção das frutas

O fator país tropical

A tradição dos licores se inicia no recôncavo baiano trazida pelos portugueses ainda no período de colonização. No entanto, no Brasil, a bebida, até hoje muito tradicional na região da Península Ibérica, ganha adaptações.

Em Cachoeira, região que foi protagonista em diversos ciclos econômicos do Brasil colônia e império, a cana de açúcar tem papel determinante na produção do álcool. Mas o status de “país tropical” é que cria o diferencial da bebida.

“A diferença do nosso licor para os licores europeus e de outras regiões do mundo é que o licor de produzido em Cachoeira tem uma espécie de domínio da tecnologia com relação a utilização das frutas eminentemente tropicais. Essas frutas tropicais encontradas aqui passam a diversificar o sabor, entre elas, se destacam o jenipapo e o maracujá”, diz José Luis

E a força da tradição cachoeirana no licor passa pelas mãos de um homem: Roque Pinto, que morreu em 2012. O filho de Cachoeira que dá nome ao fabrico mais famoso da cidade herdou do pai o talento para encontrar a medida certa entre o álcool e as frutas que dão sabor ao licor. Francisco Pinto, pai de Roque, foi quem deu início a uma produção, na época artesanal, do licor como um agrado.

“Meu avô Francisco Pinto tinha uma fábrica de charutos e fazia licores, que oferecia aos clientes. Com a morte de meu avô, meu pai Roque Pinto assumiu os negócios e foi obrigado pelos amigos a comercializar o licor, porque todo mundo gostava muito”, relembra Rosivaldo Pinto, que é filho de Roque Pinto e integra a terceira geração da maior dinastia do licor cachoeirano.

“Eu comecei aqui dentro com nove anos. Quando meu pai faleceu, passou para mim e já estou passando para meu filho. Estamos preservando a história da nossa família”, diz Rosivaldo, já preparando a quarta geração da família para seguir no negócio.

A produção em Roque Pinto tem uma meta de produzir de maio a julho entre 80 e 100 mil garrafas de licor

A linha entre a produção por diversão e a feitura da bebida como negócio não foi exclusividade da família mais famosa do ramo em Cachoeira. Aos 98 anos, Tia Ném também tem um dos licores mais tradicionais da cidade e entrou no ramo após ganhar elogios das visitas. A idosa vive no povoado de Belém, a sete quilômetros da sede.

“No São João a casa ficava cheia. Eu tenho muitos filhos e vinham os amigos deles. Eu ia fazendo licor e todo mundo achou bom, gostoso, e eu fui fazendo. Quando penso que não, eu estava no mundo do licor”, disse a aposentada ao g1.

O licor Tia Ném atualmente é comandando por um das filhas, Mariana Gouveia. A idosa, que deixou a frente dos negócios em 2019, mantém a tradição de criar sabores, mas com a peculiaridade de não experimentar a própria bebida.

“Eu gosto é de uma cervejinha até hoje, mas o licor tem quem prove para mim”, conta aos risos a aposentada.

Para este ano, as apostas de Tia Nem são em duas novidades na sua produção: maçã com canela e jambo.

Escola Roque Pinto

Ao longo dos anos, a cidade foi ganhando novos fabricos de licor. Em comum, o fato de que a grande maioria dos produtores haviam sido formados dentro da escola “Roque Pinto” de licores da cidade.

“Se você for ver, Arraial do Quiabo, aprendeu aonde? Rosa, aprendeu com quem? Então, são pessoas que foram ao longos dos últimos anos foram montando seus próprios fabricos, mas todos aprenderam com Roque Pinto” destaca José Luis, da associação dos produtores

Entre os alunos de Roque Pinto que alcançaram voos na carreira solo que se destaca é Antônio da Silva Conceição, proprietário do Arraial do Quiabo, que conta com estrutura grandiosa na entrada da cidade.

Após passar pela escola do principal nome do licor na cidade, o ex-metalúrgico iniciou uma parceria e passou a vender em Salvador o licor produzido em Cachoeira.

“Eu vendia na Feira de São Joaquim, na Feira do Japão na Liberdade, na Fonte Nova. Não tinha rótulo, nada. E aí começou o pessoal dizendo traga mais, não sei o que, aquele boca boca. Depois que eu desfiz a parceria que eu tinha, eu mesmo passei a fazer”, relembra o empresário.

Em meio às conversas com a reportagem, Antônio atende fregueses, conversa e faz pedidos de entregas de cortesias a amigos.

“Só de doação aqui, eu entrego cerca de 10 mil garrafas. É prefeitura, festas, amigos mesmo, pessoas que sempre me ajudaram e hoje é uma forma de retribuir”, conta o empresário.

A parceria entre clientes e produtores é um outro diferencial da produção do licor cachoeirano.

“A venda do licor de Cacheiro tem uma espécie de padrão, né? Uma espécie de compadrio de miseráveis, que hoje não são miseráveis, mas repare que existe uma camaradagem, uma rede social fantástica. Há um padrão de atendimento que só é visto aqui. Veja em Tonho (no Arraial do Quiabo). Todos educadíssimos no trato com os fregueses. Isso seu Roque Pinto tinha isso. É aquela formalidade, é aquele ‘bom dia, como vai a família?’, destaca José Luis, da associação dos produtores. (G1)

Siga-nos no Google NewsFacebook e Instagram. Participe dos nossos grupos no WhatsApp

Postagem Anterior Próxima Postagem

نموذج الاتصال