Opinião: Sobre a subjetividade em Feira de Santana - Por Sergio Marcone Santos

Imagem: Ilustrativa | Psico Vida
“Um belo dia, acordei cego como o destino.
Me pergunto às vezes se não continuo dormindo”
Samuel Beckett, “Esperando Godot”
Sempre fui intrigado com a metáfora. Acho essa figura de linguagem um ás. A metáfora ganha ares de sinônimo de subjetividade. Penso nela como uma das grandes intermediadoras entre o homem e o mundo das ideias. Sim, é a metáfora, também, quem dá sentido àquilo que não conseguimos ou queremos “explicar” dentro de uma lógica A=A, por exemplo (1).
Feira de Santana é uma cidade sem metáforas. Aqui, tudo acontece no cru. Os nichos da cidade são todos etiquetados (etiqueta = pequena ética), nomeados de acordo com sua maior característica. Explico: se você pensa em Câmara de Vereadores, logo terá um adjetivo que remete ao que a maioria pensa a respeito dessa Casa. Se falamos em diversão, logo teremos a imagem de bares; e se falarmos em arte, logo lembraremos de…
Pois é, caro leitor, não há nada mais subjetivo que a arte (embora ela esteja muito mais “próxima da vida”, sua representação ainda transita sob a máscara do simulacro, o que embaralha muito mais o jogo da subjetividade pois estaríamos “dentro” da arte, logo, do simulacro). Ela é a própria imagem da metáfora. Através de um quadro, de um filme, de uma música conseguimos ser levados para ambientes cuja vivência-experiência é metaforizada. A metáfora da arte seria o que nos faz arrepiar, chorar, enfim, ter um prazer gozoso-doloroso que transcende o método explicativo A=A. E é aqui que reside a subjetividade.
Quando pensamos em cidade num sentido contemporâneo, apontamos para um lugar em que haja uma simbiose entre sua estrutura e os cidadãos. Portanto, as estações de ônibus, aqui chamadas de “transbordo”, teriam que possuir um ambiente que privilegiasse o bem-estar. Consideremos bem-estar em toda a sua  amplitude de sentidos: pouco barulho, iluminação afinada, com dados a respeito dos horários do transporte e também sobre a poluição do ar, exposições de arte e apresentações artísticas. Livros baratos ou gratuitos à disposição, e muitos et ceteras. Em vez disso, temos prédios áridos, cuja “decoração” cansa o olhar. Ato contínuo, não temos um parque (não, não considero o Parque da Cidade decente, tampouco a Lagoa Subaé) para lazer e exercícios físicos. Assim, toda a dimensão da natureza nos é negada e com ela, além da contemplação, esvai-se também a experiência interior desse encontro com o outro vegetal e animal.
Também não temos espetáculos de arte suficientes para nos dar o tom (e o quantum) de subjetividade de que precisamos. A cena cultural de nossa cidade restringe-se a uns poucos abnegados produtores que teimam em oferecer um bocado de atrações de quando em quando. Nesse quesito, a metaforização um tanto transcendente da arte perde para a simples “atração”, irmã siamesa da “balada”. Como não temos o hábito de ver o Belo em exposições de arte, peças teatrais ou no cinema (Rilke: “A beleza é apenas o início de um terror que dificilmente podemos suportar, e o que nos admira é seu calmo desdém em nos destruir”) (2), perdemos a sensibilidade para aproveitarmos ao máximo as metáforas que nos podem ser sugeridas a partir dessas apreciações. É como aquele personagem de “Laranja Mecânica” (1971), de Stanley Kubrick (Anthony Burgess) (3), que é obrigado a ficar de olhos bem abertos para ver um só tipo de imagem. Ou seja, tudo se transforma numa coisa só, e as poucas iniciativas artísticas da cidade possuem o mesmo peso subjetivo de uma penca de bananas.
A metáfora/subjetividade nos permite ampliar nosso campo de visão pois ela é, a um só tempo, o duplo, ou seja, você e seu reflexo no espelho. Se encontrássemos na cidade algo que migrasse de um simples “pegar ônibus no transbordo” para atos que interferissem nesses ambientes ‒ tais como: interação digital; leitura; apresentações teatrais, musicais, performáticas; exposições de arte etc. ‒, conseguiríamos descaracterizar essa função tida e dita como primeva (pegar ônibus). Ou se fôssemos a espetáculos sem o peso da “atração” (na maioria desses espetáculos, há a ilusão-certeza de que a “celebridade” sejamos nós, pois ver e ser visto passa a ser o mais importante, dada nossa impotência ante o discernimento do Belo, fruto de nossa pouca prática com ele), passaríamos a desmecanizar esse ato, legando um contato com o subjetivo. Ou seja: embora seu reflexo, leitor, estivesse no espelho, ele não “seria” você, o que, por conseguinte, transtornaria (= mudaria a forma de viver) sua realidade. Ainda em suma: uma vez estando em uma estação de transbordo, por exemplo, conseguiríamos nos enxergar a partir de uma ótica exterior a nós mesmos. Teríamos, portanto, a nítida certeza de que o outro no espelho é você, porém um “outro” você.
Ao roubarem nossa subjetividade, tornaram nosso poder de ação quase estéril. Esse roubo consegue suplantar toda uma gama de más gestões públicas ou de representantes que não representam nas diversas casas legislativas. Se não temos a noção de alteridade (relações de contraste), passamos a nos contentar com “o que temos para hoje”. A luta de alguns em prol de melhorias na área cultural já estaria portanto absorvida pelo buraco negro da subjetividade zero. Penso que essas questões estão um pouco além de reducionismos do tipo: “o povo não tem educação” ou “nossos políticos nada fazem”. O jogo que se deveria jogar é o do conhecer-se a si mesmo e o de conhecer a verdade para libertar. O que avento até aqui são pequeníssimas atitudes nas quais ainda tenho o pachorra de crer num resultado positivo, inclusive o de que percebamos ser a subjetividade somente um meio, não um fim. O desafio seria provar da subjetividade e fazê-la contumaz em nossas vidas a ponto de não mais notarmos a diferença entre ela e a “objetividade”. Pois sim. Devolvam o que nos tiraram. Devolvam nosso direito à subjetividade. Não nos deem espaços disfuncionais, sem encanto. Nos façam partícipes de suas construções, que, a partir da perspectiva aqui proposta, se dariam num continuum, já que a subjetividade destrói e constrói(-nos) a todo instante. Façam com que cada momento na “urbis” seja de crescimento de nossa ludicidade, de nossa transcendência.
Uma ressalva: se vocês não devolverem, nós a tomaremos.
E é isso que faz o trabalho “Sebos Urbanos”, da artista plástica Maristela Ribeiro. Ele consiste em imagens coladas em diversas paredes e muros da cidade e retratam uma parte de uma estante com livros. Não há palavras, a não ser os títulos nas lombadas das obras. Há cores e não há sujeira na imagem. Palatável pois, o que sugere que embora os livros não estejam ali (Platão: “Não ser é aquilo que realmente chamamos imagem”) (4), é como se estivessem tomado emprestado dos livros reais a representação num formato fora-para-dentro ‒ da imagem para nosso interior.
Fotos: Maristela Ribeiro
O nosso pensamento precede as imagens. Então, como as crianças, que se apropriam primeiramente das imagens para depois nominá-las, os livros na estante de Maristela Ribeiro estão ali para nos ensinar a chamar por eles, a tocá-los e, finalmente, lê-los. Aquelas imagens invocam uma insistência naquilo “que não pertence a ninguém, [insistem em] alguma coisa que se tem diante (em todos os sentidos da palavra): nem aqui nem em outro lugar, nem presente nem ausente, mas iminente” (ALLOA, 2015, p.16). Aquilo que está por vir, a-diante, é o suspense que nos sugere essas imagens: a. O que livros fazem grudados num muro de loja ou na viga de um viaduto?; b. Do que eles falam?; c. Eles são parecidos com alguns que tenho em casa ou vi em algum lugar…. Um devir se estabelece a partir da apreensão, mesmo que de soslaio, daquele colorido.
Maristela também vai de encontro a uma tendência na arte contemporânea, que é a de “exagerar nas tintas” no afã de destruir/desconstruir uma cultura. Antes, sua empresa é a de mostrar a vivificência do objeto “livro”. Ao invés da destruição do “valor”, há o chamamento pela lembrança. À essa “arte do contra”, qual seja, obras de artistas que militam todo o tempo em uma guerrilha contra “um” mundo, sobretudo ocidental e tudo que seria sinônimo de sua “hegemonia” (seus hábitos, sua religião, a sexualidade etc.), “Sebos Urbanos” procura emular o (re)nascimento de algo porventura esquecido, ou: quantas casas-escolas-cabeças possuem uma estante com obras como aquela?
Em se tratando de “arte urbana”, um de seus expoentes é o artista britânico Banksy, cujas imagens aproximam-se do panfletário, não raras regadas a uma certa poesia evanescente, pois haveríamos de endurecer, mas sem perder a ternura. Nele, temos a nostalgia da luta ad hoc, a lembrança, que se quer inefável, de que existem sempre dois lados: o dele, utópico, e outro criado pela sua própria utopia, afinal, estamos no Ocidente lutando contra o próprio Ocidente (Embora o site “banksy.co.uk” seja de um hotel na Palestina com suas obras, a luta continua sendo ocidental). Ambos artistas, Maristela e Banksy, trabalham a memória de seu público como aliada para um tempo no qual os olhos “não se cansam de ver”. Porém, enquanto Maristela busca exaurir nossa falta de memória através do memento, que ali está para além do simulacro, quiçá apostando juntamente com Montaigne de que “não há o que o costume não faça ou não possa fazer” (Livro I, xxiii, p.154) (5),  Banksy, a priori, “informa” os possíveis venenos do “sistema”, dando a posteriori e bel-prazer de seus espectadores a chance para que encontrem seu páthos sobre eles (e hão de encontrar, pois seu discurso é o corrente, irônico, óbvio). Maristela aposta na busca. Banksy “já tem a resposta” e a dá pronta, muito provavelmente, para ele, tida como a última.
Além disso, a proposta da artista aparece nos muros como uma tela virtual tal a aparência da imagem: sua fotografia adesivada tem os motivos de uma imagem digital. Uma vez que o “mouse” (ou o touchscreen) equivaleria a pôr a mão no pensamento (6) ‒ e ali na parede, óbvio, não teremos o “rato” ‒ sobra-nos a singularidade do olhar fazendo as vezes do scanner. Varremos uma tela de computador, tablet ou do celular em busca daquilo que mais nos interessa, ou seja, vemos tudo, mas só enxergamos aquilo que realmente procurávamos, ou nem isso: o interesse passa a surgir no momento do surgimento do interessante. Portanto, a imagem scanneada pelos nossos olhos nos poria dentro de um sistema semelhante ao virtual, logo, o sentimento de pertença ‒ “aquilo me pertence”, oriundo do costume de que falava Montaigne ‒ ultrapassaria a fronteira do memento e se instalaria no desejo.
Sim, você já viu algo semelhante a isso: a propaganda. Mas, diante daqueles livros, quem seria o produto? O meio seria a mensagem se nós, passantes, não carregássemos mensagem alguma. Mas como carregamos uma gama de (pré)informações e pré-conceitos, a  confusão dispensa qualquer dicotomia a esse respeito. Estamos imbricados no universo das mensagens sob a “organização” da linguagem. Baudrillard: “[A forma publicitária] não propõe significados a investir, oferece uma equivalência simplificada de todos os signos outrora distintos, e dissuade-os por esta mesma equivalência” (1991 [1981], p.115). E assim é com a “art engagé”, logo, entre nós e os “Sebos Urbanos”.
O tributo ao subjetivo na obra de Maristela Ribeiro reside justamente nisso: não se pretende arte, embora o seja; não se pretende panfleto, já o sendo. Não se pretende propaganda, já reclamando. Pois é na unidade invisível dos contrários (SODRÉ, 2005, [1983]), preconizada por Heráclito de Éfeso (535 a.C ‒ 475 a.C), que se pensa, também, a Cultura e ‒ por que não? ‒ a vida. E é da junção transeunte/”Sebos Urbanos” que se pretende que ela, vida, se faça plena, na força do duplo não dicotômico, mas baseando-se numa relação de alteridade. A subjetividade permite nos enxergar e ao outro de uma forma mais profunda, humana, amorosa.
Seria bom que uma cidade do tamanho da nossa não ficasse à espreita de que algum cidadão, artista ou não, produza algo que consiga despertar nossa subjetividade. Como dito, os locais onde trafegamos, por si sós (claro, a partir de iniciativas), já deveriam promover a ampliação de nossos sentidos. Na cidade de São Paulo, por exemplo, há alguns anos, foram proibidos outdoors e atualmente também há restrições aos grafites e às pichações ‒ esses últimos, artes que, muitas vezes, dispensam o respeito ao privado para se manifestarem. Tais atitudes preservam nossos olhos de veem demais, promovendo uma certa interioridade, ou seja, um convite à teia da reflexão. Por aqui, ainda falta rever uma política sobre placas e “totens”, incentivar as interações digitais (Internet das Coisas e pensar conceitos de smart city), além de promover e incentivar as artes não só no formato “fazcultura”, mas fazer delas perenes, e tal qual a cultura digital, imersivas.
Que as metáforas ensejadas na obra de Maristela Ribeiro sirvam de mote para que possamos imbricar o óbvio cotidiano com algo superlativo.
Escrevendo espero.

Referências:
ALLOA, Emmanuel. Entre a transparência e a opacidade - o que a imagem dá a pensar. In: ALLOA, E. (Org.). Pensar a imagem. Trad. Carla Rodrigues. B. Horizonte:  Autêntica Editora, 2015. (Col. Filô-Estética).
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Trad. Maria João da C. Pereira. Lisboa: Relógio d’Água Ed. Ltda., 1991.
BOEHM, Gottfried. Aquilo se mostra. Sobre a diferença icônica. In: ALLOA, Emmanuel. Pensar a imagem. Trad. Carla Rodrigues. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015 (Col. Filô/Estética)
BORGES, Jorge Luis. Esse ofício do verso. Org. Calin-Andrei Mihailescu. Trad. José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia da Letras, 2000.
KERCKHOVE, Derrick de. A arquitetura da inteligência: interfaces do corpo, da mente e do mundo. Trad. Flávia Gisele Saretta. In: Arte e vida no século XXI - tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: Scielo Books/Unesp, 2003, posições 121-312. E-book app kindle.
KIMBALL, Roger. Experimentos contra a realidade - o destino da cultura na pós-modernidade. Trad. Guilherme Ferreira Araújo. São Paulo: É Realizações, 2016.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Edição integral. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Ed. 34, 2016.
RIBEIRO, Maristela. Sebos urbanos (série poemas visuais). 2016. 3 fotografias, color., 130 cm x 70 cm.
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. Por um conceito de cultura no Brasil. 3a. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005.
Notas do autor:
1 “...embora possam ser encontradas centenas e mesmo milhares de metáforas, toda elas podem ser reconduzidas a uns poucos modelos simples. Mas isso não precisa nos preocupar, já que cada metáfora é diferente: toda vez que o modelo é usado, as variações são diferentes. [Mas,] há metáforas ‒ por exemplo, “teia de homens” ou “caminho da baleia ‒ que não podem ser reconduzidas a modelos definidos”. In: BORGES, Jorge Luis. A metáfora. Esse ofício do verso. Trad. José Carlos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 49.
2 Apud KIMBALL, Roger. Experimentos contra a realidade - o destino da cultura na pós-modernidade. Trad. Guilherme F. Araújo. São Paulo: É Realizações, 2016, p.326.
3 Autor britânico (1917-1993) de A clockwork orange, lançado em 1962.
4 Apud BOEHM, Gottfried. Aquilo que se mostra. Sobre a diferença icônica. In: ALLOA, Emmanuel (Org.). Pensar a imagem. Trad. Carla Rodrigues. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. (Col. Filô/Estética)
5 Os Livros I e II de seus Ensaios foram publicados entre 1571 e 1580. Cf. “A experiência da condição humana: uma introdução aos ensaios de Montaigne”, de André Scoralick, p.17. In: Michel de Montaigne - Ensaios. Edição integral. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Ed. 34. 2016
6 Cf. KERCKHOVE, Derrick de. “A arquitetura da inteligência: interfaces do corpo, da mente e do mundo”. Trad. Flávia Gisele Saretta. In: Arte e vida no século XXI - tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: Scielo Books/Unesp, 2003, posições 121-312. E-book app kindle.“(...) [A]s imagens dão acesso ao que se poderia chamar de um ‘pensamento com os olhos’”, é a assertiva de Gottfried Boehm, op. cit., p.29.

Sergio Marcone Santos é formado em Letras Vernáculas pela Uefs e mestrando no PGLitCult/UFBA
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