Cachoeira: IPHAN alega "desvio de finalidade", por parte da prefeitura, no uso da verba do FUNPATRI

Foto Reprodução | Iphan
O IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) deu um parecer desfavorável ao uso da verba do Fundo de Preservação do Patrimônio (FUNPATRI). A prefeitura municipal de Cachoeira enviou para a Câmara Municipal o Projeto de Lei nº 16, de 02 de maio de 2023, que propõe, em um de seus artigos, que os recursos do FUNPATRI possam ser utilizados para financiamento de "contratação de estrutura para shows/apresentações como som, palco, iluminação, ornamentação, indumentárias, etc." ou para "a reforma, recuperação e requalificação de unidades habitacionais."

Segundo o órgão, ele não tem o poder de impedir o uso dos recursos e nem sabe o valor que tem no Fundo, porém, destaca que as "verbas federais que foram destinadas à preservação do patrimônio cultural em outras atividades, de fato, pode significar desvio de finalidade em sua gestão, como também já previsto na Lei Municipal nº 1.000/2013, art. 88," diz trecho do parecer. O IPHAN ainda sugere que o Conselho Municipal de Cultura comunique o fato "ao Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) e ao Ministério Público Federal (MPF), para que sejam tomadas as providências judiciais e administrativas cabíveis com relação à proteção e salvaguarda do patrimônio cultural cachoeirano..." 

A assessoria de comunicação da Prefeitura de Cachoeira, em contato com o Diário da Notícia, informou que "a resposta será dada ao IPHAN após a aprovação do Projeto de Lei na Câmara de Vereadores." Na noite dessa segunda (29/05), a Câmara Municipal aprovou em primeira votação, por maioria dos votos, o Projeto de Lei nº 16/2023.

Leia a seguir o trecho das considerações do IPHAN:

Inicialmente, cumpre destacar que esta autarquia, cuja incumbência é a de proteção ao patrimônio cultural brasileiro, não tem competência e/ou autoridade para fiscalização da aplicação de recursos orçamentários dos municípios, como é o caso da destinação de dotação orçamentária do FUNPATRI, sendo tal fiscalização de responsabilidade dos Tribunais de Contas e dos sistemas de controle interno de cada ente federativo, nos termos dos arts. 70 a 75 da Constituição Federal.

12. Não é de conhecimento desta autarquia o montante de recursos alocado atualmente no FUNPATRI, informação esta que só o Governo Municipal, gestor do fundo junto ao Conselho Municipal, pode fornecer. No entanto, registra-se que os fundos de preservação do patrimônio instituídos na período do Programa MONUMENTA, entre os quais o de Cachoeira-BA, foram criados, em sua maioria, para receber as dotações orçamentárias do Governo Federal provenientes deste programa, de forma que é bastante provável que eles ainda sejam compostos, atualmente, por esses recursos federais residuais, que, no âmbito municipal, pode chegar a valores expressivos.

13. Nesse sentido, a aplicação de verbas federais que foram destinadas à preservação do patrimônio cultural em outras atividades, de fato, pode significar desvio de finalidade em sua gestão, como também já previsto na Lei Municipal nº 1.000/2013, art. 88:

§ 1 Os recursos provenientes do Fundo de Preservação do Município da Cachoeira continuarão sendo aplicados exclusivamente com a finalidade de financiar as ações de preservação e conservação de áreas tombadas pelo IPHAN na ampliação do número de imóveis restaurados e conservação das obras realizadas na área de investimento do Projeto Monumento no âmbito do Município;

§2 Continua vedada a aplicação dos recursos financeiros do Fundo de Preservação do Patrimônio Artístico Cultural em despesas com pessoal e com serviços de atribuição do Município.

14. A Lei Municipal é clara ao informar a exclusividade de uso do FUNPATRI em FINANCIAMENTO em prol da preservação e conservação do patrimônio cultural, sendo vedada a sua aplicação em outros tipos de despesas municipais, como no caso em questão, que trata de calamidade pública e em nada tem a ver com a preservação do patrimônio histórico e cultural. A exclusividade prevista de financiamento é coerente e louvável, pois mantém a auto sustentabilidade deste recurso financeiro.

15. Também não se pode deixar de mencionar que a proteção à cultura e ao patrimônio cultural é dever do Estado previsto na própria Constituição Federal, como se lê no art. 215:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

16. Caso o município decida aplicar os recursos do FUNPATRI em outra área, haverá, na prática, a desmobilização de um projeto de preservação da cultura brasileira de mais de duas décadas, o que evidencia um descumprimento deliberado do texto constitucional e a relegação da cultura a segundo plano na gestão municipal, além de inobservância da própria legislação do ente federativo; e contrariando as diretrizes iniciais estabelecidas, conforme indicado no item 6 desta Nota Técnica.

17. É de grande estranhamento a intenção de retirada da autonomia do Conselho de Política Cultural, eleito, e legítimo representante dos segmentos culturais do município, e/ou a tentativa de mudança da legislação vigente para tal fim. Enquanto os Conselhos Participativos têm sido motivados a atuarem como órgãos de deliberação no país, a destituição do Conselho de Política Cultural referente à sua gestão do Fundo de Patrimônio pode trazer sinais de autoritarismo arbitrário e ausência da participação popular, em contradição ao que rege a Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu art. 216:

§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

18. Além de que, na Carta Externa enviada a este Iphan, é evidenciado que o Conselho de Política Cultural já possuía um planejamento coerente de destinação dos recursos, o qual está sendo arbitrariamente ignorado pela atual gestão municipal:

Realizamos uma reunião com a prefeita em 11 de novembro de 2022 onde ela nos pediu apenas para um retorno onde deveríamos lhe apresentar o edital [de financiamento para requalificação de imóveis históricos] nos relatando durante o encontro [que] não tinha a intenção de causar qualquer entrave para a pronta realização do projeto. Ocorre que esse segundo momento nunca aconteceu. Encaminhamos 06 (seis) ofícios solicitando uma agenda com a prefeita que nunca nos foi respondido, tornando assim inverídico seu posicionamento relatado de que “não causaria qualquer entrave para a pronta realização do projeto” Efetivamente, ficou evidente o total desinteresse do executivo no atendimento dessa pauta culminando com a indicação nº 32 do vereador que, por coincidência, é esposo da prefeita. Contrariamente ao que estabelece o regramento de uso e destinação dos recursos do fundo, o entendimento é de que a Câmara de Vereadores não possui prerrogativa para anuir sobre qualquer utilização da verba e que o executivo incorrerá em equívoco de desvio da destinação do Fundo caso utilize para atribuições que são exclusivamente do município. Sob a alegação de que utilizará o recurso “para reforma e construção de casas das famílias de baixa renda que foram atingidas pelas chuvas”, a solicitação impetrada na indicação, além de ilegal, está sendo utilizada como subterfúgio para a irregularidade [...].

19. Também é preocupante o fato de que tramita, na Câmara Municipal de Cachoeira, o Projeto de Lei nº 16, de 02 de maio de 2023, sendo que a emenda nº 05, de 22 de maio de 2023, em anexo (SEI 4427959, fl. 81-82), propõe, em seu art. 2º, que os recursos do FUNPATRI possam ser utilizados para financiamento de "contratação de estrutura para shows/apresentações como som, palco, iluminação, ornamentação, indumentárias, etc." ou para a "a reforma, recuperação e requalificação de unidades habitacionais", projeto este completamente destoante ao objetivo original do Fundo, de preservação e salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro.

20. Nessa mesma conjuntura, cabe destacar a recente renúncia da então Secretária de Cultura e Turismo do município, Sra. Janete Magno, no mês de maio deste ano, por meio de carta pública (em anexo - SEI 4427959, fl.83), na qual alega que:

A gestão [do Governo Municipal] não se preocupa com as políticas públicas para a Cultura em todo o seu contexto material, patrimonial e imaterial, querendo por toda a força burlar um amplo sistema de leis que regem a Cultura desse Município [...].

[...] e a falta de respeito com todas as leis que regem o Sistema Municipal de Cultura [...], sem ao menos respeitar a soberania da Secretaria e do Conselho Municipal de Política Cultural.

21. Tendo em vista todas essas considerações, sugere-se, veementemente, que o Conselho Municipal de Cultura de Cachoeira comunique os fatos de que tem conhecimento aos Tribunal de Contas da União (TCU) e ao Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia (TCM-BA), para apuração/investigação da movimentação e origem dos recursos financeiros em questão e de eventual desvio de finalidade em sua aplicação.

22. Sugere-se, ainda, que seja comunicado ao Ministério Público do Estado da Bahia (MPBA) e ao Ministério Público Federal (MPF), para que sejam tomadas as providências judiciais e administrativas cabíveis com relação à proteção e salvaguarda do patrimônio cultural cachoeirano e brasileiro, bem como à proteção dos recursos financeiros destinados à estas ações, dentro de suas atribuições constitucionais.

23. É o que se tinha a informar. Coloco-me disponível para quaisquer outros esclarecimentos.

Atenciosamente,

João Gustavo Andrade Silva

Arquiteto Urbanista | Mestre em Preservação do Patrimônio Cultural - Chefe do Escritório Técnico de Cachoeira - Superintendência do Iphan na Bahia | Escritório Técnico de Cachoeira

Siga-nos no Google NewsFacebook e Instagram. Participe dos nossos grupos no WhatsApp

Postagem Anterior Próxima Postagem

نموذج الاتصال