Baiana conta detalhes da briga diplomática para ter a guarda do filho

(Almiro Lopes)
Vestido com uniforme do Barcelona, Nicolas, de apenas 9 anos, tinha acabado de voltar da aula de futebol, na quarta-feira (19), e não escondeu a felicidade ao contar à mãe, Marcelle Guimarães, que marcou um gol durante o treino. Ele mal tinha descansado de uma partida e já queria voltar à quadra do prédio onde mora, em Salvador. “Mamãe, vai ter mais foto ou eu posso jogar bola?”, perguntou o pequeno.

Apesar da timidez, a criança não hesitou em convidar a equipe do CORREIO para jogar futebol. O clima era de tranquilidade, mas o que Nicolas, que nasceu em Houston, no Texas (EUA), não imagina é que a vida dele está envolvida em uma briga diplomática que parece estar longe de acabar: a mãe do menino é acusada pela Justiça americana de tê-lo sequestrado em 2013.

 A criança, que chegou em Salvador aos 3 anos de idade, descobriu durante uma aula de teatro na escola onde estuda que a história dele pertencia, na verdade, ao mundo. “Ele é tímido, mas adora teatro. E, durante uma das aulas, o professor estava fazendo uma pesquisa da origem dos sobrenomes dos alunos e, quando digitou o do Nico na internet, apareceram fotos e vídeos dele com o pai”, contou Marcelle Guimarães. O menino é filho de Marcelle com o americano Christopher Scott Brann. 

Eles se conheceram durante o mestrado que ela fez nos Estados Unidos e foram casados por cerca de quatro anos. Mas o casamento dos sonhos acabou se transformando em um pesadelo. Segundo Marcelle, o ex-marido a agredia, física e psicologicamente, com frequência. O caso Em julho de 2013, Marcelle saiu dos Estados Unidos, acompanhada do filho, com destino ao Brasil. A viagem aconteceu mediante a autorização do pai, Christopher. No entanto, ela não voltou aos EUA e no dia 12 do mesmo mês a baiana entrou com uma ação no Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) pedindo a guarda da criança.

 A decisão não demorou muito a sair. No dia 22 de julho, o juiz responsável por julgar o processo decidiu pela concessão da guarda provisória a Marcelle, estabelecendo o direito de visita ao pai americano. De acordo com documento do tribunal baiano, ao qual o CORREIO teve acesso em inteiro teor, o juiz argumentou que a “competência internacional para processar e julgar o feito, são o local onde a criança encontra-se residindo e a ocorrência, ou não, de sequestro internacional, conforme estabelecido na Convenção de Haia”. É justamente na Convenção de Haia, um tratado internacional respeitado pelos EUA e pelo Brasil, que se apoiam os advogados da baiana. 

Os defensores alegam que a guarda de Nicolas concedida a Marcelle tem validade perante as Justiças brasileira e estadunidense e, por isso, ela não pode ser acusada de sequestro do filho. Prisão dos pais No entanto, não é desta forma que entende a Justiça norte americana. Marcelle continua sendo acusada pelo crime de sequestro internacional de menor e não pode ir aos Estados Unidos sob pena de ser presa no desembarque. O que ela não esperava é que toda essa situação fosse recair sobre os pais dela, o empresário Carlos Guimarães, 67, e Jemima Guimarães, 66 anos.

 O casal, que tem outro filho morando nos Estados Unidos, decidiu sair de Salvador para visitar a família em fevereiro deste ano e acabou detido no aeroporto de Miami, no estado da Flórida. Eles foram condenados em maio, sob acusação de terem participado e facilitado o sequestro do neto Nicolas. “Meu filho fez nove anos há alguns dias e esse foi o primeiro aniversário que os avós não passam com ele. Meu pai, inclusive, uma vez, passou apenas três dias em Houston para não perder o aniversário do Nico. É muito triste isso. Eu não ouço a voz de meus pais desde fevereiro”, contou Marcelle, emocionada. 

 Os pais de Marcelle chegaram a ficar 40 dias em um presídio federal e, após pagarem fiança, foram transferidos para prisão domiciliar, na casa do filho caçula, onde permanecem com tornozeleira eletrônica e sem nenhuma comunicação externa, principalmente com o Brasil. “São duas pessoas de idade, presas em uma casa, e só têm uma hora diária destinadas a caminhadas pelo bairro, como forma de exercício físico. Meus pais passaram 40 dias presos, separados. Minha mãe não fala uma palavra em inglês e precisou dividir cela com condenados por tráfico internacional de drogas, por exemplo. Agora, mesmo na casa de meu irmão, eles estão devastados, minha mãe é mais alta do que eu e está pesando menos do que eu peso”, desabafou Marcelle, sempre segurando as lágrimas ao falar dos pais. 

 A baiana ainda descreveu como está sendo os meses sem os pais. “Imagine o que é estar no meio dessa confusão, com meus pais presos, sendo acusada de um crime internacional e ter de preservar meu filho, que é uma criança. Nico faz terapia desde que chegou no Brasil. Eu sempre tentei preservar ele, mas, desde a prisão dos avós, por causa das notícias, as coisas chegaram nele, os colegas já comentam a situação na escola”, disse ela. Marcelle também afirmou que não pode ter nenhum tipo de contato com os pais nem com os irmãos. “Meus pais foram condenados e ainda podem pegar 3 anos de prisão em regime fechado lá nos Estados Unidos. Infelizmente, diante de tantas notícias ruins, o que me dá esperança é que o tempo que eles já permaneceram custodiados sirva para abater da pena dada a eles por júri popular”, disse. Diplomacia Carlos e Jemima dependem de uma decisão judicial que vai definir como se dará o cumprimento da pena, se em domicílio ou em presídio federal. “Nossa esperança é que as autoridades brasileiras se imponham perante os Estados Unidos e lutem pela liberdade de meus pais. 

Não existe nem nunca existiu sequestro internacional e o país norte americano está descumprindo e rasgando a convenção de Haia. As autoridades brasileiras precisam fazer alguma coisa”, desabafou Marcelle. A defesa de Marcelle está há cinco anos em uma briga diplomática pela regularização da guarda de Nicolas e a consequente retirada da condenação atribuída a ela. A Convenção de Haia, da qual Brasil e Estados Unidos são signatários, estabelece no artigo primeiro que o documento “aplica‐se aos atos públicos lavrados no território de um dos Estados contratantes e que devam ser apresentados no território de outro Estado contratante”. Desta forma, segundo a defesa da baiana, a guarda do menor, concedida pelo Tribunal de Justiça da Bahia se tornou documento probatório da não existência de sequestro internacional, uma vez que foi solicitada e expedida no país onde a criança se encontra. Apesar do pacto internacional entre os países, os documentos emitidos pela Justiça americana sobre o caso mencionam a Convenção de Haia em benefício de Christopher.

 Em maio deste ano, já depois da prisão dos pais de Marcelle, por exemplo, quatro senadores dos estados unidos assinaram um documento enviado ao governo solicitando providências para o retorno de Nicolas ao país de nascimento, os Estados Unidos. De acordo com trecho do ofício, “o retorno dele [Nicolas] aos Estados Unidos é fundamental e acreditamos [os senadores] que a questão do rapto parental internacional deve ser uma prioridade para seus agentes”. No mesmo documento, os senadores americanos acusam a Justiça brasileira de descumprimento da convenção, alegando que os juízes que decidiram sobre a guarda de Nicolas se recusam a reconhecer que ele deve voltar aos Estados Unidos. “Isso é uma loucura, porque a convenção deve ser utilizada para preservar a vida do menor e meu filho, assim como eu, corria perigo se continuasse em Houston”, declarou Marcelle. 

 De acordo com o processo de guarda que ainda tramita no Tribunal de Justiça da Bahia, todo os direitos de visita ao menor foram concedidos a Christopher, que, desde 2013, altera as regras determinadas pelos juízes brasileiros. No TJ-BA, todas as tentativas do americano, por meio de recurso, foram negadas pelo órgão. “Ele sempre teve direito a ver o filho. Eu nunca o impedi que o fizesse. Muito pelo contrário. Às vezes a gente agendava as datas e ele não aparecia no Brasil. Ou, então, vinha a Salvador resolver outras questões e sequer comunicava ao filho. Teve um dia que meu filho ficou esperando o pai por horas na escola e eu que precisei ir buscá-lo”, revelou Marcelle.

 Os pedidos de Christopher na ação do TJ-BA consistem em visitas realizadas por dias seguidos e sem a presença de segurança, exatamente da forma contrária estabelecida pelo tribunal, que permitiu que o pai veja a criança em dias alternados e sempre na presença de um oficial de justiça. “Claro que, se ele ficar sozinho com o Nico, vai dar um jeito de tirar meu filho de mim”, disse. Ainda existe outra ação na Justiça Federal que discute a guarda de Nicolas, em razão de um recurso enviado por Christopher. Mas, não há nenhuma decisão que questione a situação atual da criança, que permanece sob a guarda da mãe. Nos processos, Marcelle juntou documentação que explica a decisão dela de sair dos Estados Unidos, a exemplo de agressões sofridas, um transtorno sexual que acomete o ex-marido, além de descumprimentos de medidas protetivas impostas contra Christopher por juízes americanos.

 Série de agressões Marcelle Guimarães disse ao CORREIO que, durante o casamento com Christopher, sofreu várias agressões físicas e psicológicas, que envolviam até ameaças com arma e contra o filho. “A gente sempre casa acreditando que vai dar certo e luta por isso. E foi isso o que eu fiz até não aguentar mais ser agredida. Eu quis proteger a minha vida e a vida de meu filho”, contou. Ainda de acordo com ela, à medida em que o tempo passava, as agressões aumentavam, até que, ela precisou da ajuda de um médico. Um documento datado de 2012 mostra que Marcelle buscou atendimento médico em um hospital do Texas [Midtown Family Medicine], se queixando de dores de ouvido e na mandíbula. No laudo médico consta: “a paciente declara violência doméstica; marido bateu do lado esquerdo da face, mas a dor está no lado direito da mandíbula e do lado direito do ouvido, possivelmente pela queda no chão. A paciente não quer denunciar para a polícia. 

No mesmo ano, outro documento, desta vez uma troca de e-mail entre Christopher e Marcelle, mostra o americano confessando as agressões contra a ex-mulher. A defesa da baiana explicou que, por ser da religião Mórmon, o pai de Nicolas sempre confessava todo e qualquer ato que desrespeitasse Jesus. E as confissões tinham que ser feitas à vítima em forma de perdão. Em e-mail datado de 5 de agosto de 2012, Christopher escreveu que na noite anterior, na presença do filho, gritou, xingou, empurrou, puxou o cabelo, bateu na cabeça de Marcelle com as mãos, além de ter retido o aparelho de celular dela e mantido ela em confinamento dentro do quarto. Antes de assinar, ele escreveu: “Não tenho orgulho de meus atos. Espero que que a minha sentença seja justa aos olhos de Deus e da Justiça”. 

 Vício por sexo Além das agressões que alega ter sofrido durante todo o período em que ficou casada com Christopher Scott Brann, Marcelle também afirmou que o ex-marido tem “compulsão por sexo”. Ela contou ao CORREIO que só soube do fato, depois de anos de casada, porque o ex-marido confessou o problema e pediu ajuda. “Ele confiou em mim para contar que sofria de uma compulsão, um vício por sexo, e que isso chegava até a prejudicar o trabalho dele como médico, já que ele precisava evitar de fazer alguns exames em mulheres”, disse a baiana. Marcella declarou que chegou a pagar terapias para o ex-marido, com profissionais conceituados dos Estados Unidos e especialistas no tipo de problema que Christopher dizia ter. Em dezembro de 2012, Christopher enviou e-mail a uma das terapeutas que cuidava do caso dele. “Gatilhos: provocados por uma paciente (22 anos que precisava de um exame pélvico). Não fiz o exame. Pedi para que um dos residentes o fizesse. Tenho evitado todos os exames pélvicos e de mama desde que voltei”, escreveu ele na mensagem, que foi enviada também para Marcelle. Divórcio Em 2012, depois da série de agressões sofridas, Marcelle decidiu pedir o divórcio a Christopher, seguindo o conselho de uma das terapeutas que cuidava do caso dele.

 Segundo ela, pouco tempo após a separação, no entanto, o americano tentou invadir a casa da ex-mulher e só se retirou do local com a chegada da polícia. Marcelle também contou que decidiu estabelecer um esquema de visitas de Nicolas ao pai, ainda em Houston, e que, em um dos fins de semana, o ex-marido impediu de a criança voltar para a casa da mãe. “Ele fez muitas coisas a meu filho, mas eu nunca falei mal do pai para o Nico. Não quero expor meu filho a essa situação. Ele guarda as fotos com a família americana, avós, tios e primos. Eu nunca impedi que ele tivesse contato com ninguém. Mas, ele está crescendo e começando a entender tudo o que está acontecendo. Ainda é muito difícil dar esse suporte a meu filho, que é uma criança”, disse. A baiana relatou ao CORREIO que chegou a obter uma medida protetiva na Justiça americana, que proibia Christopher de se aproximar dela e do filho, mas ele descumpriu a decisão e continuou ameaçando ela. “Ele dizia que o país era dele e que eu era quem iria ficar sem o Nico. Ele ameaçava tirar meu filho de mim todos os dias. E eu estava totalmente sozinha, com medo, vivendo sob aquele terror”, disse. 

 Depois de todos os episódios, Marcelle contou que, em razão da troca de juízes dentro do processo dela contra Christopher, a medida protetiva acabou sendo revogada e o passaporte e do filho ficou retido por alguns dias com a Justiça americana. “Meu ex-marido me deixou em pânico e eu sabia que, se ele quisesse, poderia tirar meu filho de mim”, declarou. Volta ao Brasil Foi, então, que surgiu um convite para Marcelle participar de um casamento em Salvador e ela pediu à Justiça a devolução dos passaportes. Com os documentos em mãos, foi a vez de Christopher autorizar a saída de Nicolas dos Estados Unidos, e assim ele o fez. A mãe embarcou com o filho para Salvador no início de julho de 2013. “Eu cheguei em Salvador com uma mala, apenas. Vim para o casamento, passar férias ao lado de minha família, mas, quando me vi aliviada daquele sentimento de prisão que eu vivia em Houston, comecei a buscar formas legais de ficar no Brasil. Procurei advogados e fiz tudo dentro da lei, desde o pedido de guarda e todos os procedimentos adotados até agora. 

Não foi nada planejado, como meu ex-marido afirma”, contou Marcelle. De acordo com as acusações de Christopher, que se estendem a Carlos e Jemima Guimarães, ex-sogros dele, Marcelle já saiu dos Estados Unidos decidida a não voltar. Os documentos enviados ao Governo Norte Americano relatam que Nicolas tinham matrícula em escola de Salvador, de propriedade da mãe de Marcelle, desde antes de chegar à capital baiana, o que, segundo a defesa do americano, comprovam a premeditação do sequestro do menor. No entanto, Marcelle explicou que as matrículas do filho na escola da mãe dela aconteciam sempre que o menino passava férias em Salvador. “Minha mãe tem uma escola infantil e sempre faz cursos de extensão para os alunos. Quando o Nico viajava para Salvador, eu matriculava ele nos cursos, para que pudesse ter uma atividade durante o período que ficávamos na cidade. 

Isso sempre acontece”, relatou Marcelle. Ainda segundo ela, em razão de todas as manifestações da Justiça americana, que insistem na acusação, principalmente após a condenação dos pais, a única esperança da família é que as autoridades brasileiras ajam com mais eficácia no caso. “A gente precisa que as autoridades do país enfrentem os Estados Unidos e lutem pela liberdade de dois brasileiros que são inocentes. Meus pais não cometeram crime nenhum. Eu não cometi crime nenhum”, afirmou. O Ministério das Relações Exteriores afirmou que o Consulado-Geral do Brasil nos Estados Unidos é quem cuida do caso, ao lado dos advogados contratados por Carlos e Jemima, perante as autoridades americanas.

Fonte: CorreiodaBahia
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